Mesmo após dois anos de pandemia, os especialistas em saúde ainda tentam entender as implicações da Covid-19. Estudos mostram que os problemas causados pela doença não terminam com o fim da infecção: muitas pessoas que se recuperaram do vírus ainda sofrem com os impactos da enfermidade. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 10% a 20% das pessoas que tiveram Covid-19 sofrem com esses sintomas após se recuperarem da fase aguda da doença. A OMS considera como “Covid Longa” ou “Condição Pós-Covid” os sintomas que surgem em até três meses após a contaminação, que duram pelo menos dois meses e não podem ser explicados por um diagnóstico alternativo.
Descrição da imagem: ilustração horizontal e colorida de um menino em frente a uma covid-19 em forma de monstro. O menino tem pele branca, cabelos pretos e bagunçados, olhos fechados e aparência cansada. Usa máscara branca e boné verde marinho com aba vermelha. Veste blusa vermelha com gola "v". O monstro covid está com as mãos no ombro do menino, é arredondada, tem cor verde pastel claro; nas extremidades, tem nove pontos achatados; os olhos são pretos; está com a boca aberta, a goela em verde escuro e os dentes pontudos na cor creme. Acima do moço, um ícone de bateria com um risco vermelho. O fundo é roxo em tom de malva com textura de pinceladas de tinta.
“A Covid Longa são todas essas situações clínicas que acontecem a partir do momento da infecção aguda. São manifestações que podem ocorrer em qualquer parte do corpo, de maneira permanente ou transitória, principalmente nas áreas neurológica, metabólica, cardíaca e renal”, explica o médico infectologista Alexandre Schwarzbold, professor de Medicina no Departamento de Clínica Médica da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e membro consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia.
No entanto, pesquisas recentes, como o estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), publicado em periódico da Oxford, apontam que cerca de metade dos 646 pacientes com Covid-19 acompanhados por 14 meses apresentam sequelas que podem perdurar por mais de um ano. É o caso de Emerson Silveira de Oliveira, paciente do Ambulatório Pós-Covid do Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM). Emerson teve 50% do pulmão comprometido e ficou 17 dias entubado. Mesmo após um ano de ter contraído a doença, ele ainda sofre com as sequelas e está afastado do trabalho. “Após a minha internação, fiquei com a voz rouca, sentia muita falta de ar e tive que fazer cirurgia na traqueia devido ao longo tempo de intubação. Agora estou fazendo fisioterapia para a parte muscular, sinto muita câimbra e fraqueza nas pernas. Estou focado em me recuperar e retomar a minha vida normal”, relata.
Descrição da imagem: fotografia horizontal e colorida de um homem, de perfil, sentado e com o braço para a frente, apoiado em uma estrutura de metal. ele tem pele branca, cabelos lisos, curtos e na cor preta; usa máscara cirúrgica branca e veste moletom cinza. No braço, usa um medidor de pressão na cor cinza escuro. Atrás, aparelho elétrico de hospital na cor branca, sobre mesa bege. Ao fundo, parede acinzentada e cama elástica pequena e azul escura.
Sequelas e sintomas
Uma pesquisa publicada na Clinical Medicine, periódico especializado em medicina, conduzida por cientistas de Londres, Nova Iorque e Portland, identificou 203 sintomas associados à Covid Longa, que envolvem dez órgãos diferentes do corpo humano. O estudo foi realizado com dados de 56 países e envolveu mais de 3 mil pessoas. A conclusão é que 56 dos 203 sintomas identificados persistiram por sete meses. Os mais prevalentes são fadiga e dificuldades respiratórias, seguidas por perturbações do olfato e paladar, dor no peito, névoa mental e perda de memória, bem como perturbações do sono.
O professor Schwarzbold aponta que as manifestações clínicas da Covid Longa vão desde pequenas perdas de forças e de memória até casos de problemas psicológicos como depressão, crises de ansiedade e estresse pós-traumático. Além disso, a condição também pode gerar problemas mais graves como manifestações renais, endócrinas e mudanças metabólicas que a pessoa não tinha antes do vírus, como diabetes, alteração no colesterol e hipertensão.
“A Condição Pós-Covid tem esse aspecto de se manifestar em diferentes órgãos e também pode agravar quadros que já existiam. Uma pessoa com uma comorbidade, mesmo que controlada, pode ter uma piora nesse problema”, afirma. É o caso de Zaíra Oliveira de Lucena, estudante de 21 anos que apresentou sequelas após dois meses da infecção pelo coronavírus. Zaíra se contaminou em janeiro de 2021 e sofreu com alterações no olfato por mais de seis meses, além de lidar com queda de cabelo e crises de enxaqueca que permanecem até hoje. No entanto, o problema maior foi o agravamento de uma condição que ela tinha no estômago. “Eu tinha um problema de gastrite, que se agravou muito após a minha infecção pelo vírus. Emagreci mais de dez quilos por causa disso, e todo médico que me atendia falava que o agravamento se deu por causa da Covid. A única solução era esperar os sintomas passarem. Foram meses desesperadores”, relata.
O que sabemos até agora
A condição parece surgir como resultado da inflamação causada pelo vírus, mas o mecanismo que causa a covid longa ainda é desconhecida pelos especialistas. Schwarzbold explica que, apesar de o coronavírus entrar pelas vias respiratórias e causar ali a maior parte dos sintomas, ele tem capacidade de se espalhar por todo o organismo e agir em diferentes órgãos. “Quando nos infectamos, o nosso corpo reage e causa um processo pulmonar que libera proteínas inflamatórias chamadas citocinas. Elas se espalham pelo corpo todo e acabam estimulando a inflamação em vários órgãos, o que pode causar o surgimento das manifestações pós-Covid. Essa é a explicação mais aceita pela comunidade científica até o momento”, afirma o especialista.
O professor ressalta que as vacinas podem diminuir as chances do desenvolvimento da Covid Longa por agirem na diminuição da inflamação. Para ele, o fluxo de casos hospitalares de manifestações Pós-Covid diminuíram conforme os índices de vacinação aumentavam. É importante ressaltar que a Pós-Covid pode atingir qualquer pessoa que se recuperar da doença. A tendência é que casos mais graves tenham sequelas mais permanentes e quadros leves tenham sequelas mais transitórias. “Nos casos mais leves as manifestações tendem a durar apenas alguns meses e depois desaparecem. Já em muitos casos graves as pessoas realmente ficam com sequelas, que podem evoluir para doenças crônicas e a pessoa não volta a ter uma normalidade”, atenta Schwarzbold.
Orientações e recomendações
Apesar das pesquisas sobre a forma de identificar e tratar a vida de pessoas com covid longa ainda estarem em andamento, é possível seguir algumas recomendações. Schwarzbold orienta que, após um mês da infecção pelo vírus, o paciente faça uma revisão dos seus exames para ver como estão as funções sistêmicas do organismo. Essa orientação é voltada principalmente para os indivíduos que têm comorbidades: é importante ir ao médico especialista e reavaliar o quadro. “Se há uma suspeita de covid longa, seja por sintomas ou alterações em exames pós-covid, é preciso procurar atendimento médico. Há uma tendência de procurar tratamento apenas para as sequelas mais graves. Entretanto, é fundamental buscar ajuda médica para as outras questões, pois elas também podem interferir bastante na qualidade de vida das pessoas”, destaca o professor.
A OMS recomenda a vacinação como a melhor forma de minimizar os casos de Covid Longa. “Os governos precisam levar isso a sério e fornecer cuidados integrados, apoio psicossocial e licença médica para os pacientes que sofrem com essa condição. A OMS continua a trabalhar com parceiros e grupos de pacientes para acelerar a pesquisa e desenvolver as melhores práticas clínicas, inclusive em reabilitação para o tratamento da Covid Longa”, afirmou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor geral da organização, em uma coletiva de imprensa em maio deste ano.
O Ambulatório Pós-Covid da UFSM
O Ambulatório Multiprofissional de Reabilitação Pós-Covid do HUSM iniciou suas atividades em janeiro de 2021. Com o objetivo de proporcionar acompanhamento das manifestações sistêmicas causadas pelo coronavírus e de buscar entendimento rápido das sequelas da doença, o ambulatório já avaliou cerca de 90 pacientes e inseriu 70 no programa de reabilitação.
O serviço é disponibilizado às pessoas que ficaram internadas no HUSM por conta da Covid-19, e agora recebe também pacientes do Hospital Regional de Santa Maria. Conta com especialistas das áreas de pneumologia, psiquiatria, serviço social, nutrição, fisioterapia e fonoaudiologia. “Aqui funciona como uma triagem, aplicamos testes e avaliamos para depois encaminhar para as áreas específicas. O paciente que entrar aqui vai ter toda a assistência de qualidade e gratuita pelo SUS, isso é um diferencial porque a gente oferece atendimento com todos os especialistas que ele precisar”, diz a professora Adriane Pasqualoto, responsável pelo ambulatório.
De acordo com Adriane, todos os pacientes atendidos têm algum sintoma de Covid Longa. As queixas mais recorrentes são limitações funcionais como falta de ar, dificuldade de caminhar longas distâncias, fraqueza e dores musculares. Entretanto, alguns também relatam alterações no sono, na memória, queda de cabelo, dificuldade para engolir alimentos e distúrbios psicológicos.
O tratamento é definido conforme as necessidades individuais do paciente. São duas sessões semanais de fisioterapia e uma de outra especialidade, com duração de 50 a 60 minutos, por no mínimo oito semanas. Além disso, o paciente também é acompanhado por até dois anos. “O trabalho do ambulatório é importante para os estudos sobre as sequelas da Covid e ajudar a entender todas as implicações da doença”, destaca Adriane.
Fonte: Revista Arco